Resta a Grande Beleza
Algumas semanas atrás, eu estava em frente à TV assistindo a um vídeo-manifesto da marca Rolex, homenageando Roger Federer. Na sequência, o Youtube recomendou automaticamente uma compilação de grandes jogadas de Federer na grama sagrada de Wimbledon. Neste momento eu já chorava intensamente, um choro de lavar a água. Foi quando, empática e curiosa, minha namorada me perguntou: “por que você se identifica tanto com o Federer?”. Ali começou este texto.
Poucas horas antes, Federer havia perdido nas quartas-de-final de Wimbledon. Um torneio em que ele corria por fora, longe das condições físicas e técnicas ideais, mas onde aos poucos foi avançando, tendo suas fagulhas de genialidade e criando uma comoção de que algo mais, talvez, fosse possível. Coisas de Federer. Mas não era e não foi possível.
Um momento do jogo resume bem esse enredo: Federer perdia por 3-2 o tiebreak do segundo set para Hubert Hurkacz, quando um slice defensivo de esquerda do polonês, na corrida, sem peso, veio pairando no ar em direção à rede, bem diante de Federer, alimentando a esperança de uma reação naquele set. Pausa dramática… Um pequeno escorregão do suíço produziu um erro inimaginável, um voleio torto, com o aro da raquete, que sequer fez a bola chegar à rede. O eco do espanto profundo do público escancarava a estranheza daquela situação. A seguir, o terceiro set, catártico, terminaria 6-0 para o jovem polonês, um raríssimo pneu sofrido por Federer em qualquer quadra de tênis ao longo de toda a sua vida.
As emoções todas daquele dia, somadas à pergunta elementar da minha namorada, me fizeram começar a pensar mais profundamente no porquê de eu ter uma relação tão visceral com Federer, há quase 20 anos. Pesquisando algumas coisas, cheguei rapidamente a um artigo de David Foster Wallace, publicado no The New York Times em 2006: ”Roger Federer as Religious Experience”. Esse texto me envolveu de certa forma em uma sensação de tribo: de que eu não era o único que sentia e tentaria descrever a natureza sutil dessa idolatria.
Logo nos primeiros parágrafos, Foster Wallace define como “Federer moments” os choques que certas ações do suíço são capazes de gerar nas pessoas, fazendo com que se vejam de joelhos, com os olhos arregalados, derrubando pipoca pelo chão da sala e emitindo sons de incredulidade.
Apesar do artigo de Foster Wallace não falar sobre religião, seu título é muito feliz. Afinal, algumas idolatrias evocam sentimentos e atos similares aos da serviência ao divino. Contudo, as idolatrias brotam e sobrevivem do encantamento, não da doutrinação. E isso sempre me intrigou. Os ídolos mais viscerais de uma pessoa revelam muito do seu caráter, sua linguagem, suas sombras, seus sonhos.
Naquele dia (da derrota do Federer e da pergunta da minha namorada), revisitei alguns dos meus ídolos ao longo da vida e fui recobrando seus porquês – o que eles me diziam; o que me deram; o que eu procurava neles, que eu tinha ou me faltava. E sem dúvida Roger Federer ocupa um lugar muito especial, provavelmente o mais especial, no rol dos meus ídolos.
Mas a pergunta sobre o motivo era, ainda, o mais importante dos portais. O fato de que David Foster Wallace escrevera um artigo como aquele, quinze anos antes, foi uma primeira luz. O inquieto Foster Wallace abreviou a própria vida aos 48 anos, deixando sua ironia e complexidade eternizadas em obras notáveis, como Infinite Jest, abordando temas como relações interpessoais, uso de drogas, o papel do entretenimento, e inclusive o tênis, que ele praticava. Uma pessoa cuja atmosfera continha elementos dessa abundância e dignidade, seguramente, buscava (e sofria a angústia de buscar) a grande beleza.
Essa noção dá nome a um dos meus filmes preferidos, o italiano “A Grande Beleza”. Nele, a certa altura, o protagonista Jep Gambardella tece um breve diálogo com a santíssima Sor Maria. Ela pergunta o motivo de ele ter escrito um único livro na vida, há tanto tempo, e nunca mais ter publicado nada. Ao que ele responde: “eu andei procurando a Grande Beleza... e não encontrei”.
Filho de atriz e produtora audiovisual, sobrinho de cantores, neto de um apaixonado por música clássica, desde pequeno entendi que a arte existia porque a vida não bastava. É exatamente esse interesse passional pela poesia das coisas que me aproxima de Roger Federer.
Sua plasticidade é exclusiva. Assisto a vídeos meus jogando tênis (nota: acredito que estou sempre fazendo as coisas como ele) e absolutamente nada se parece. Vejo outros colegas amadores… vejo também os profissionais (ao vivo e pela TV) e, artisticamente, nada se compara.
O ritual veloz do saque, de vocacionado, que simplesmente intui e flui, desprezando protocolos robóticos, concentrações exageradas ou pingos de suor desabando do rosto. A leveza do trançar das pernas... suas fugidas da esquerda como um bailarino dançando sobre a água... a agilidade quântica do punho... a lancinância elegante do slice. Um híbrido entre esporte de alto rendimento e uma ópera ou algo do tipo. Mesmo depois de tantos anos, pude perceber que essa magia ainda permanece: semanas antes, de novo minha namorada assistia comigo a uma partida de Federer (pela primeira vez), em Roland Garros, e vidrada na TV me dizia: “como é bonito vê-lo jogar. É diferente”.
As imperfeições, até elas, também reforçam essa magia. Afinal, a beleza está nos extremos. Mesmo como nº1 do mundo por tanto tempo, símbolo de sucesso e virtuosidade, Federer sempre deu muitas “madeiradas”, como se diz na gíria do tênis. Em resumo, golpes razoavelmente distraídos, nos quais a bola toca o aro da raquete, em vez do centro das cordas, voando para bem longe do destino esperado. Também no “wabi-sabi” reside o artista essencial, que não segue exatamente uma mecânica, e sim o instinto. Joga por música, não por fundamento. Em Federer, o acerto e o erro têm o mesmo ar de acidente, de algo que vem e simplesmente é, como uma pincelada, uma rima, um acorde. Na maior parte das vezes as escolhas são certeiras, mas também podem não ser. O fato é que são sempre hipnoticamente belas.
Federer acaba de completar 40 anos de idade. Foi capaz de alcançar, mesmo fora de forma, as quartas-de-final de um grand slam. Perdeu para um jovem polonês que sempre o teve como ídolo; que desde criança, era mais um a venerar aquela expressão mítica e mística da cinética e da poesia no corpo de um ser humano. Esse jovem polonês foi extremamente eficaz em aproveitar o jogo já mais lento e errático de Federer. Concentrado, sólido, ele foi lá e venceu, dentro das regras do esporte e das leis da performance. Mas não dentro dessa outra coisa inominável que existe em alguma fresta entre a arte, a estética, a religião, a maiêutica e o agnosticismo.
Sim, Federer envelheceu. Nos dias seguintes a sua derrota, algumas pessoas nas redes sociais, entre torcedores de rivais e fãs menos sensíveis, batiam ponto sobre a certeza de que ele não era mais o mesmo. Diziam que ele deveria encerrar a carreira, que uma derrota assim era um sinal definitivo. Os mais odiosos diziam inclusive que Federer não era tudo o que se construíra.
Penso que para essas pessoas o velho incomoda. Querem que a juventude seja uma fonte infinita de suas próprias ilusões. O mundo está cheio desses abutres, como os que amam rock mas criticam seus ídolos quando já mais velhos não alcançam os mesmos agudos sobre o palco, em vez de desfrutar o privilégio de presenciar os contornos da paixão quando madura.
Felizmente, a maioria das pessoas, nas mesmas redes sociais, enviavam mensagens positivas: que Federer possa continuar presenteando os fãs com mais alguns torneios, quiçá mais alguns anos, cuidando do corpo e da mente. É incômodo ver um ídolo deixar de ser “competitivo”, o que subitamente ativa nossa lente mais racional, binária, reptiliana sobre a vida e as relações.
Mas feita essa travessia, cumprido esse desapego, resta a fonte. Resta um corpo no ar, todo vestido de branco, sobre a grama verde, flutuando felinamente em pacto com o ritmo de expansão do universo. Resta a Grande Beleza.